Nos dias atuais qualquer pessoa ligada ao cotidiano, ou as práticas escolares, tem conhecimento sobre a “crise da educação”. Os profissionais da área falam da existência de tal crise, mas não apontam sua extensão nem razões exatas. Alguns pais se deparam de muito perto com esta tal crise e seu atual “vilão”: o “aluno-problema”, que traz consigo certos distúrbios psicológicos e/ou pedagógicos, de natureza tanto cognitiva quanto comportamental. Entre os profissionais da educação é bastante presente a queixa de alunos indisciplinados e/ou incapacitados para aprender. Tais alunos muitas vezes chegam já na segunda e terceira séries do ensino fundamental rotulados como “casos perdidos”.
Uma das principais queixas dos professores para os psicólogos escolares é o pedido de ajuda de como lidar com a “bagunça” e agressividade de alunos. Algumas considerações devem ser feitas a este respeito. A primeira é que o conceito de disciplina varia conforme a exigência de cada um. A segunda é o fato de que a indisciplina é geralmente referida como distúrbio, desvio, como se o natural fosse a disciplina. Contudo a transgressão e a agressividade são inerentes ao ser humano e fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, principalmente quando nos referidos a períodos como pré-adolescência e adolescência (o que será assunto para um próximo artigo). Obviamente este fato não dá a estas crianças o direito de agredir e transgredir o que quiserem e quando quiserem, a imposição de limites é também fator determinante para o bom desenvolvimentos das crianças e adolescentes. A questão dos limites por sua amplitude e complexidade também será abordado em separado brevemente.
Um estudo feito por Áurea Guimarães em 1985 analisa a escola como lugar onde a idéia de que a disciplina produz saber, mantém-se, e é aceita e praticada por todos os membros da instituição escolar desde a figura do diretor até a dos alunos. Desta forma os comportamentos de indisciplina, e por vezes de depredação dos alunos acusam o descontentamento e as críticas a toda a instituição escolar. A imagem social da escola, se encontra ameaçada, há uma espécie de mal estar e uma falta aguda de credibilidade profissional, a respeito dos profissionais da área. Nossos filhos escutam falas depreciativas a respeito da escola e dos profissionais de educação dentro de casa. Que imagem de professores e da escola os pais estão ajudando os filhos a formar? O de um lugar de aprendizado e respeito ao professor ou a de uma instituição decadente, sem recursos com profissionais desmotivados. Aquilo nossas crianças têm ouvido de nós e da mídia a cerca da escola e dos professores as ajuda a formar uma boa idéia do que é a escola de seu papel e importância? Ou só ajuda a denegri-la ainda mais reforçando a idéia de que não se deve respeitar este espaço? Esta é uma questão para que cada um pense e veja que escola tem “pintado” para seus filhos. Pois o que as crianças ouvem falar a respeito do que pensamos é muito relevante para a opinião que irão formar a respeito do mundo.
Este “fantasma” do fracasso parece rondar a educação, e atualmente tem-se dado a este fantasma o rosto do “aluno-problema”. Este é aquele aluno que padece de certos supostos “distúrbios psico/pedagógicos”. Estes distúrbios podem ser de natureza cognitiva ou comportamental, nessa última categoria enquadra-se o que chamamos de indisciplina. Há ainda uma justificativa no meio pedagógico de que “se o aluno aprende, é porque o professor ensina; se ele não aprende, é por que não quer ou porque apresenta algum tipo de distúrbio, de carência, de falta de pré-requisito”. Aqui nos deparamos novamente com aquela linha de pensamento da culpabilização do indivíduo pelo fracasso, e de sua rotulação. Não que o aluno seja absolutamente isento de “culpa” neste processo. Mas as expectativas colocadas sobre ele também influenciarão em muito seu desempenho.
Pesquisas recentes apontam como fator importante, o olhar do professor, no que diz respeito ao sucesso ou fracasso no processo de escolarização que é em grande parte, construído na interação professor-aluno. Obviamente apenas esta interação e as expectativas depositadas no aluno pelo professor não são a único fator constituinte do desempenho deste aluno. Mas muitas destas pesquisas abordam o princípio da “profecia auto-determinada”, que afirma que os estudantes correspondem ou deixam de corresponder às expectativas dos outros. Desta forma se ele ouve todo o tempo “ele é terrível”, “vive aprontando”, e não ouve a respeito de si expectativas boas ou diferentes destas, ao que esta criança irá corresponder? Com o que irá se identificar? O aluno acaba sendo influenciado por aquilo que se espera dele. Uma pesquisa interessante de Rosenthal e Jacobson (Profecias auto-realizadoras na sala de aula: as expectativas dos professores como determinantes não intencionais da capacidade intelectual dos alunos) vem comprovar esta idéia. No experimento os professores de uma escola, foram informados no início do ano letivo que alguns estudantes haviam mostrado potencial de crescimento intelectual, quando na verdade , essas crianças haviam sido escolhidas aleatoriamente. Contudo, vários meses depois, muitas delas – principalmente da primeira de da Segunda séries - mostraram elevação incomum no QI. Outros pesquisadores confirmam este fato, de que as expectativas dos professores podem de fato funcionar como profecias auto-determinadas.
Podemos apontar três hipóteses muito usadas pelas escolas, por professores e pelos pais destes alunos para explicar o problema da disciplina ou da falta dela. Hipóteses estas que acabam reiterando alguns preconceitos no que diz respeito a explicação para o fracasso escolar.
A primeira hipótese explicativa é a do “Aluno Desrespeitador”. Nesta parte-se do princípio de que o aluno de hoje em dia é menos respeitador do que o aluno de antes. E que a escola atual teria se tornado muito permissiva, e a escola de antigamente era melhor. Neste sentido temos o fato de que a escola anterior a 1970 era para muito poucos, uma escola elitista, portanto não comparável com os modelos atuais. Além disso, podemos apontar a questão do respeito, que diz estar presente na escola de antigamente, mas que na maioria das vezes era conseguido na base da ameaça e do castigo. O respeito ao professor não deve vir do medo e da punição, mas da autoridade inerente ao papel do professor.
A Segunda hipótese explicativa é a do “Aluno sem limites”. Esta parte da suposição de que as crianças de hoje em dia não tem limites, não reconhecem a autoridade, não respeitam as regras, e a responsabilidade por isso é dos pais que teriam se tornado muito permissivos. Se prestarmos atenção nos alunos indisciplinados fora de sala de aula, num jogo coletivo por exemplo, veremos o quanto as regras são muito bem conhecidas pelas crianças. As crianças quando entram na escola, já conhecem muito bem as regras de funcionamento de uma coletividade qualquer. Neste ponto percebe-se uma certa justaposição entre os papéis dos pais e da escola, há a necessidade de se delimitar bem estes papéis, sendo que não é tarefa do professor moralizar a criança, função que estes acabam muitas vezes assumindo diante dos problemas do dia-a-dia. Tal comportamento é desaconselhável por três motivos: 1) se trata de um desperdício da qualificação e do talento específico do professor, 2) seria um desvio de função, porque o professor não foi contratado para tarefas que são paternas e maternas, 3) caracterizaria uma quebra de contrato pedagógico, porque o seu trabalho deixa de ser realizado.
Desta forma podemos apontar que muitas vezes a indisciplina parece ser resposta ao abandono das funções docentes em sala, porque só a partir do papel do professor evidenciado em aula, é que os alunos poderão ter clareza de seu papel.
A terceira hipótese explicativa é a do “Aluno desinteressado”. Esta diz que para os alunos, a sala de aula não é tão atrativa quanto os outros meios de comunicação. Da mesma forma que é preciso se distinguir o papel da família do da escola é preciso também distinguir o papel da escola dos de outros meios de comunicação, uma vez que não tem a mesma função. A função dos meios de comunicação é o da difusão informação, e esta sem dúvida não seria função da escola, que tem como objetivo principal a reapropriação do conhecimento acumulado em certos campos do saber. Na escola portanto, não se repassam informações simplesmente, ensina-se o que elas querem dizer, para muito além do que elas dizem. O que não exime as escolas de procurarem métodos que envolvam e chamem mais a atenção dos alunos que apenas lousa e giz.
O problema em relação a estas hipóteses é que são apoiadas em evidências equivocadas acabando por isolar a indisciplina como um problema individual do aluno, e esquivam-se de levar em consideração a sala de aula e a relação professor-aluno.
Enfim diante de uma questão tão séria como a crise na educação explicações tão simplistas como estas que ouvimos todos os dias de pais e professores, não podem ser assumidas como motivação para a crise. Esta tem fatores muito mais amplos, relevantes e complicados do que simplesmente a falta de limites, os problemas familiares e a falta de interesse de alunos individualmente. Até porque se fossem questões individuais, apareceriam como problemas isolados, e não envolveriam toda a escola e toda a rede de educação.
Para aprofundar-se:
AQUINO, Julio Groppa, A Indisciplina e a escola Atual, Faculdade de Educação da Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 1998.
MACHADO, AM, SOUZA MPR, As crianças excluídas da escola: Um alerta para a psicologia. IN: MACHADO, AM, SOUZA, MPR (org) Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
SILVA, Luiz CF, Possíveis incompletudes e equívocos dos discursos sobre a questão da disciplina, Universidade Estadual de Maringá-UEM, Maringá, 1998.
SOUZA, Batriz P, Professora desesperada procura psicóloga para classe indisciplinada . IN: MACHADO, AM, SOUZA, MPR (org) Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
SOUZA, PR, A Queixa Escolar e o Predomínio de uma visão de mundo. IN: MACHADO, AM, SOUZA, MPR (org) Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
PATTO, Maria H. S, da Psicologia do “desprivilegiado” à psicologia do oprimido, IN: PATTO Maria H.S., Introdução a psicologia escolar, TAQ, São Paulo 1989.
ROSENTHAL, R, JACOBSON L, Profecias auto-realizdoras na sala de aula: as expectativas dos professores como determinantes não intencionais da capacidade intelectual dos alunos.IN: MACHADO, AM, SOUZA, MPR (org) Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.